quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Gêmeos

Ele a observava de cima.

O jeito que ela se movia, as ações, tudo muito sutil, tudo muito despretensioso.

Ficar imaginando o que ela sentiria se soubesse era um dos seus passatempos favoritos.

O que diria se ela descobrisse? O que pensaria? Será que iria ficar furiosa e jogar objetos cortantes em sua direção? Ou será que iria dar boas risadas e debochar de seus sentimentos? Ou nenhuma das opções anteriores?

Fosse o que fosse, ele não queria saber.

Fechou o caderno, olhou ao redor e se espreguiçou.

Coçou as costas, balançou os cabelos e recolheu seu material, colocando tudo de volta em sua mochila. Seus movimentos, assim como os daquela que observava, também eram lentos, preguiçosos, como quem não tinha pressa por um amanhã, por um novo dia, por uma nova expectativa ou possibilidade.

'Está bom assim', pensou. 'Está bom assim'.

Foi para casa. Tomou um banho, ensaboando-se enquanto pensava nela.

Claro, ela era o foco dos seus pensamentos atualmente. Raramente ele conseguia prestar atenção em qualquer detalhe da rotina sem se pegar vagando pelas diversas imagens que guardava na cabeça: "ela acordando", "ela sorrindo", "ela comendo", "ela-fazendo-qualquer-coisa-que-faça-no-seu-dia-a-dia".

Colocou a toalha ao redor da cintura enquanto seus devaneios continuavam.

- Café. - disse para si mesmo enquanto olhava para o pequeno apartamento.

Alguns metros quadrados. Muita bagunça. Desorganização era a palavra de ordem, por mais horrorosa que aquela expressão soasse. Ele soltou uma risadinha com aquele último e colocou uma velha samba-canção que não lhe atraía e muito menos atrairia alguém.

Sua existência havia ficado limitada. Poucos amigos, poucas expectativas - consequentemente poucas frustrações -, poucas roupas, poucas alegrias, poucas vontades.

Uma única, aliás.

Tê-la.

Ela virou aquele personagem, o único que pode salvar uma donzela de uma enrascada.

Sim, virei donzela, pensou enquanto colocava o café velho que preparara mais cedo. Melhor que nada. Poucas expectativas, certo?

Olhou para baixo. Seus pés mal tocavam o chão tremenda a forma como seus livros deitavam acomodados pelo piso da sala. Pisar em folhas e ouvir o farfalhar de suas reclamações já lhe era costumeiro. Como se dissessem: "Ei! Estamos aqui! Porque você não experimenta nos tirar do chão e nos dar uma olhada séria pela primeira vez na vida?"

- Não. - respondeu, porque havia imaginado àquela mesma indagação.



Ele me observa de cima ou sou eu?

Eu não me movo despretensiosamente como ele pensa. E também, ao contrário do que ele imagina, eu sou a donzela.

Não tenho muitas expectativas para meus 21 anos de idade.
Aliás, tenho muitas e é justamente por isso que acho que não tenho nenhuma.

No fim das contas, não terminar como meus pais - no seus piores defeitos humanos - é meu grande objetivo.
Para chegar lá, a estrada é árdua, até porque a cada dia que passa, me vejo com um reflexo um pouco desconfortável de que estou cada vez mais parecida com meus progenitores.

Apenas uma criança, tentando ser alguém.
E mais uma vez, eu caio no clichê. Tenho certeza absoluta, inclusive, que tem uma ou duas músicas sobre isso.

De qualquer forma, nada mais me interessa. Eu vou dando cada passo na esperança de que alguém chacoalhe o mundo de alguma forma. Nem que seja para o fim dele. E o meu.

Eu o observo de longe, sem saber ao certo quem é. Ele também. Eu até que acredito em almas gêmeas.