segunda-feira, 28 de maio de 2012

The Beatles

Sentada, os olhos ardem.

O gosto de chá ainda amarga um pouco a boca.

Aquelas palavras que atravessam espaço-tempo e se propagam dentro do canal auditivo, reproduzem-se na pracinha do subconsciente através do megafone, chamando a atenção de pessoas e animais que lá estão, causam nostalgia nos personagens que passeiam, despretensiosos, em frente à igrejinha. 

Palavras cantadas que movem de verdade. Transportam. Carregam-me em braços recobertos de seda, enquanto exalo o agradável odor de campo na curva do pescoço da melodia.

Embalam-me. Confortam-me. Alisam de leve os meus cabelos e sopram, gentilmente, no meu rosto.

O coração dispara com tanta sutileza. O carinho mais afável vem daquilo que não tem forma e apenas som. Ondas equalizadas que quebram aos ouvidos e penetram na alma.

Frases como força.  Força de sentimentos humanos. Fraca, deixo-me levar.

Let it be.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A ligação

Ela me ligou.

Eu, atendi:

- Alô?

- Oi.

- Quem é?

- Sou eu, *****.

- Ah, oi. Diz aí.

- 'Cê tá melhor?

- É né... aos poucos vai sarando.

- Pode crer.

(...)

- E você?

- 'Tô bem. Atarefada mas 'tá tudo bem.

- Legal.

- Enfim, te liguei porque fiquei realmente preocupada naquele dia.

- Ah, certo. Não, não, tá tranquilo.

- Você parecia tristinha. Não gosto quando 'cê fica assim.

- Nem eu. Haha.

- É.... De qualquer forma. Você sabe que qualquer coisa eu estou aqui pra você, não sabe?

- Sei. É, eu sei.

- Mesmo sendo impossível. Eu estou aqui pra você.

- Eu sei.

- Mesmo que nosso futuro seja impossível. Eu realmente estou aqui pra você.

- É. Sei.

- Mesmo que eu não exista. Eu estou aqui.


Fitei o teto. Contei alguns segundos e percebi que estava falando sozinha.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Coração

"Se tens um coração de ferro, bom proveito. 
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."*

Ele palpitou ansioso.

Faziam pouco mais de dois anos que nada vinha acontecendo. Era um vazio, mas um vazio de limpeza. De organização.

Precisava daquele tempinho para colocar tudo em ordem, tudo no lugar certo. O último que viera fora quase que avassalador.

Não, não. Mentira. A partida doeu mais do que o próprio fim. A falta foi mais incômoda do que a própria ausência.

Mas, recuperou-se. Aos poucos. Processo lento, gradual, quase que infinito. Ele doeu, ficou doloridinho, respirou com dificuldade e depois voltou ao normal. O sangue, que é sua energia, parecia circular mais lentamente durante aquele período. Ele pulava em saltos hesitantes... isso quando não se contraía num momento de puro sofrimento, a dor lancinante fazendo com que todo seu pequeno volume se espremesse, sufocado, lacrimejando gotas rubras de pesar.

É passado. Tudo aquilo de algo serviu: deixou-o mais bem preparado, mais maduro, mais adulto.

Ele marchava. Marchava com determinação e com os dois olhinhos - inexistentes - no horizonte. Fingia-se indestrutível (muro que se constrói depois de uma situação como aquela), mas provou-se vacilante no primeiro teste verdadeiro.

Foi como quem não quis nada. Apareceu.

Ela se relacionou devagar. Cautelosa.

O corpo não controlou. Não era de se surpreender, até porque ela era teimosa.

Mas ele ficou guardadinho com cuidado - ela o amava e ele correspondia. O relacionamento dos dois ficou muito mais íntimo inclusive quando ela sofreu aquela perda. Comunicavam-se mais, ouviam um ao outro com mais atenção e sempre procuravam agir com cautela quando a rotina se esbarrava em situações exigentes.

Ele não sabe explicar como aconteceu e tinha certeza que se a perguntasse ela, apesar de ser uma protagonista na história, ficaria muda na hora de fornecer a resposta igualmente.

Era frustrante para ela, ele sabia. Algumas vezes ele sentiu uma pequena contração, um remexido esquisito, um puxão doloroso. Certas ideias o deixavam muito triste. O que acontecera com ela, tão de repente? O que foi que fizeram para aqueles sintomas aparecerem novamente?

Ah, como ele lamentou.

Claro, não foi naquela proporção do pouco mais de dois anos atrás mas, que droga, ela havia prometido! Não mais sofrimento, ainda mais tão cedo, com alguém tão superficial, com possibilidades tão limitadas! O que ela estava pensando? Que ele era feito de aço?

Era sangue, carne, músculos, fibra.

Machuco-me, gritou, em desespero. Machuco-me sempre que você não racionaliza. Sempre que você se deixa enganar. Sempre que alimenta esperanças. Sempre que me esquece, me ignora, me escanteia. Todas as vezes que pensa em si, e não em mim em primeiro lugar. Porquê? E logo com essa situação TÃO pequena?

Respirou de ódio. Inspirou trêmulo e expirou gerando batimentos quase que frenéticos e ritmados.

Você não cuidou de mim, chorou, os átrios rasos d'água (ou seria sangue?). Você não cuidou de mim.



*José Saramago

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Na Superfície


Ele sentou e escreveu:

Eu realmente não me importo com seu passado. Presente. Futuro.
Da mesma forma na qual não me importo que você se importe com os meus.

No encontro de olhares, de toques, de nós dois, o importante são os sujeitos, eu e você, juntos.

O texto é para ser superficial. Não se assuste. Tudo que temos é superficial.

Se é assim que quer, é assim que vai ser. Eu concordo.

Não se assuste.

Só peço uma coisa: seja segura na superficialidade.

Oficialize a instabilidade. Tatue sobre o peito a incerteza. Me garanta que nossa superficialidade será, de alguma forma, segura.

Prefiro assim.

Mas, mais uma vez, não se assuste. Aliás, longe de mim importar-me contigo. Dentro de sua independência, você sabe cuidar de si mesma. Não precisa de ninguém com você. Só tenha cuidado.

Ninguém precisa de você, também.

(Conto)