quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Republicando o que não é meu

Sempre houve diferença.

As drogas, o álcool, o cigarro. Aquilo já era parte do cenário. Ela convivia com isso quase que diariamente desde pequena. Desaprovação da mãe, comum para o pai. Afinal, ele sempre fora o precursor daqueles hábitos.

Acordava sempre às 7 da manhã e, junto com o café, sua primeira baforada de erva.

Para ela, o cheiro até que era agradável. Familiar. "Cheiro do meu pai", dizia. Menina pequena, frágil, magrinha para o corpo cheio de curvas que iria adquirir futuramente. Sua pele, como seu progenitor me confidenciou um dia, era branca como leite e macia como seda. Havia até sardas no seu corpo, imagine só! Sardas que desapareceram com o tempo...

Juntos com as sardas rapidamente teve que ir junto a inocência.

As brigas foram ficando cada vez mais frequentes entre o pai e a mãe. Ela, a inabalável responsabilidade em forma de pessoa, correta até os dentes, não suportava viver do jeitinho brejeiro que um dia, sabe-se lá como, lhe encantou. Ele, farto de ter que lidar com regras e costumes que não lhes eram naturais. 'Acorda, levanta, trabalha'. Era demais.

Pratos, copos, vidro, louça. Tudo pelos ares. Um pedaço, inclusive, cortou-lhe a lateral do pescoço. Um corte fino, quase imperceptível que, no entanto, virou marca registrada de uma personalidade que viria a ser forte e marcante.

Pois bem. Como as flores brotam e como as borboletas criam asas, eis que ela cresce.

Inabalável como a mãe. Irresponsável como o pai. Linda como si só.

Mas no meio do caminho, mais que uma pedra, um muro se elevou de repente.

Cresceu com a mãe. Fins de semana com o pai. Até aí tudo bem. Drogas? Deixaram de ser presentes, com exceção dos dias de descanso em que era 'obrigada' a conviver com o 'cheirinho do velho'. Aliás, ensaiou frente ao espelho a mesma cara de desprezo e a mesma torcida de nariz perante a erva na qual a mãe fazia com tanta excelência.

Vida quieta. Correta. 9,5 de Matemática ao Português. Soletrando e multiplicando conhecimento. Boa base. Base sólida.

De repente, o mundo fica acinzentado. Sem graça. Sem mais nem menos mesmo. Daquele jeito que ela nunca imaginou que um dia poderia ficar.

Foi aos 12. Ou 11, não lembro bem até porque não é minha história.

Ao banheiro, ela me confidenciou, que costumava lembrar-se da imagem das primas mais velhas que brincavam com shorts pequenos ou até mesmo nuas, sem pudor - óbvio, não? - na frente das primas mais novas. Aquela imagem, segundo ela me contou, por algum motivo estranho lhe apetecia.

- Mas apetecia, mesmo, cara. Sério. Tipo, água na boca. Era muito estranho. Eu lembro que me reprimia por isso, que não era normal.

Disse-me entre risos.

Tempos depois, até mesmo revistas "masculinas" (acrescento aspas até porque ela zombou uma vez que não existe revista mais feminina do que aquelas que possuem fotografias de mulheres nuas) lhe enchiam os olhos e lhe molhavam a intimidade.

Porém, o que hoje me conta entre risos, já a fez chorar e muito. Aliás, até hoje. Entre uma cheirada e outra, inclusive.

Mas isso é mais para o fim da história.

Contar a mãe lhe parecia um passo fácil. Até porque era sua melhor amiga. Certo, contida, mas ainda assim sua amiga. Foi confiante. Jogou os cabelos dourados que lhe caíam até a cintura e caminhou até o seu escritório. Mãe no computador, típico. Trabalhando, como sempre.
- Mãe.

A primeira palavra que, hoje, a fazem ficar com os olhos caramelados transbordando de lágrimas e emoção.
Uma resposta seca, distraída.

Respirou mais uma vez e investiu, descarregando tudo de uma vez, aguardando, ansiosa, um sorriso leve, uma resposta afável, uma indiferença sutil.

O que veio lhe aterrorizou. Por muitos anos. Um terror que até hoje mesma eu carrego.

Antes a indiferença, antes até mesmo o leve dar de ombros e o voltar ao trabalho.

Quanto ódio. Quanta dor.

Rasgo-me ao meio ao ouvir suas palavras através do celular. Dói. E dói porque eu já vi.

Sim, eu me joguei no meio dessa fogueira, entrei no olho do furacão e fui achando que escaparia ilesa, ou pelo menos igual ao que eu era antes, só um pouco diferente.

Só que a diferença é muito grande. Mudou-me por dentro, por fora, na mente, no coração.
Apaixonei-me loucamente. Por sua beleza, sim. Por seus problemas, com certeza.

Apaixonei-me por sua prestatividade quase que doentia. Por suas risadas estrambólicas e suas piadas sem graça. Por sua mania de se achar menor, quando é uma puta mulher de fibra. Por sua força ao acordar de manhã para trabalhar, desde os 16, e sustentar suas irmãs, madrasta e pai, muitas vezes com mísero salário mínimo. Por saber rir das coisas boas e chorar das coisas verdadeiramente tristes como a fome e a dispensa vazia que um dia encaramos juntas. Até mesmo por ser infantil o suficiente por achar que não sabe superar isso tudo sem ajuda das suas drogas.

O que é meu é seu e vale até mesmo na tristeza.

Lembro estar com minha cabeça apoiada em suas pernas descansadas com meus cabelos, na época longos, quase tocando as pontas no chão. Com uma mão, acariciava algumas de minhas mechas. Com a outra, fumava a herança do seu pai. Entre uma conversa e outra, saiu:

- As pessoas não sabem amar, não é? Quero dizer, não sabem mesmo sentir. Uma vez eu tava na padaria e uma senhora olhou com uma cara de desprezo para um pirralho que pedia dinheiro. Foi horrível. Eu me senti hiper mal, sabia? É uma doidera. Gente que não se respeita e tal... Mas ó: a gente é diferente. Aliás, com você é diferente.

Sem resposta.

- Como assim? Ah, velho, sei lá. Você sabe que tem que sentir e eu sei disso. Você sente, cara, e isso é o que faz a diferença para mim. Tudo que você passou, por mais que seja diferente do que eu vivi, foi muito louco para você. Teve um peso enorme. A tempestade no copo d'água para você tem importância. Isso é massa.

Ainda sem reação, ri sem graça.

- Que foi? - tragou. - Você não acha? - expirou.

Eu acho. Na época, não respondi.

Eu acho, querida. E acho mesmo. Para mim é assim e eu sei que para você também. Me meti nessa confusão porque eu sempre me importei. Porque eu sempre sonhei com esta confusão, por mais 'suicida' que isso seja. Eu sonhei minha vida inteira com este grande drama que a gente vive. Do bate boca, da distância, da paixão incontrolável, do (seu) ciúme indomável, dos tapas que já trocamos, das noites, dos dias, dos risos, das lágrimas, da loucura, da sanidade. De cada momento.

Eu quis e não me arrependo. NÃO ME ARREPENDO.

E eu sei que você também não.

Sei que antes de publicar isso, você já leu. E gostou. E disse até que chorou. Disse que se um dia eu publicasse, queria que todo mundo lesse e que fosse o primeiro capítulo de um livro que eu ia escrever porque, segundo você, eu vou ser uma autora de livros de sucesso. Eu rio com essa possibilidade ainda, principalmente quando releio meus textos e eles soam tão bobos para mim.

Mas tá, vai, vou te dar esse crédito.

Não pense o contrário. Não pense que eu lhe odeio ou algo assim. As palavras rudes, como você está careca de saber, são uma defesa imbecil para tentar te manter longe.

Mas você, bem esperta (ou quimicamente alterada demais), passa por cima disso e mantém firme a fina corda que ainda nos une, de tempos em tempos, de ligações em ligações, de noites solitárias em noites solitárias.

Antes isso que mais nada, certo?

Antes isso que mais nada.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Lavatory's Philosophy #1

O que mais me incomoda é que ainda dói.
O que mais me dói é que ainda incomoda.

O medo de que daqui há alguns anos eu continue estremecendo ao pensar nisso, também me deixa aturdida.

Eu quero mais é esquecer, mas não acontece.

Ainda não aconteceu, pelo menos...

Memórias que, hoje, já são vagas e em preto e branco ainda me fazem lacrimejar como quando assisto Gone With the Wind.

Já sei o início, o meio e o final da história, mas ainda sofro com ela.

Mas creio que seja assim.

Ou não?

É angustiante. E, por falta de outra palavra, puramente chato.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A saudade, o sufoco e o sonho

A sensação de engasgo é uma das piores que já experimentei.

Mãos tremem, coração dispara, corpo sua e até os olhos lacrimejam.

É como se o organismo se preparasse para uma guerra por sobrevivência e lutasse com todas as armas possíveis para que o ar entre pelas vias respiratórias e dê continuidade ao fato de se estar vivo, com o coração batendo, cérebro claro e operante.

Depois do ataque - e supondo que a sobrevivência se sucedeu -, vem a ressaca da batalha. Respira-se fundo e mais uma vez, para garantir que está tudo ok nos campos dos órgãos. Tateia-se em busca de água para estabilizar e respiração cansada. Olhos ardem, cabeça lateja e uma sensação de intensa fadiga física se apodera.

Para complementar, os momentos de aflição, apesar de temporários, podem causar uma fobia eterna ou bem duradoura de executar o ato causador do engasgo.

É...

Com a saudade é mais ou menos assim. Pelo menos quando é uma perda recente e, ainda mais e especialmente, se se tratar da primeira pessoa do singular.

Sufoca, esgana e quase mata.

A falta é tanta que as mãos tremem, o coração dispara, o corpo sua e até os olhos lacrimejam.

A ausência brusca causa o susto. O susto me desespera. O ar me falta e o juízo - com a cabeça cheia de sangue - também parece que se esvai.

Agora, o pior de tudo isso, é quando estas conseqüências perduram e causam um efeito colateral permanente... nos quais os mesmos sintomas que eu senti há tempos atrás, voltam e voltam com uma força gladiadora.

No coliseu dos meus sentimentos, o leão é a personificação da saudade e o gladiador é a minha pobre sanidade tentando sobreviver ao caos e ao que lhe parece os últimos minutos de sua vida. (Lavatory's philosophy)

O problema é que o leão é tão formidável que ele acaba tomando excursões pela savana e vira e mexe ele está de volta em mim... na minha cama... no meu sono.

Quando as vontades e os desejos são muito fortes ou estão bem escondidos a ponto de que eu não coloque para fora, meu subconsciente faz o trabalho de externizar tudo, eu queira ou não.

Acordei de um sonho sufocante, no qual o leão mostrou as garrinhas novamente, e a saudade cravou fundo as unhas no meu peito.

Ergui-me arfante, zonza, desnorteada, triste, abalada.

A vontade de superação é grande. Mas a saudade é um gigante. (Ou seria leão?)

Como se a vida não achasse o suficiente me pregar peças e me colocar neste bendito coliseu de tempos em tempos, a saudade ainda inventa uma situação, com novas circunstâncias, nas quais eu nunca vivi, e coloca o personagem principal causador da saudade no foco dos acontecimentos. Escreve um bom roteiro com estes elementos e ainda produz um filme independente que me é exibido em sonho, vívido como em uma tela de cinema.

Acordo daquele jeito, engasgada por lágrimas e por acontecimentos que nem sequer existiram, desfrutando das "alegrias" de ser humana.